O Brasil vive um momento histórico em
relação à descriminalização das drogas. Estamos diante de um cenário
sociológico, jurídico e político-econômico de futuras e profundas
transformações. Caso o Supremo Tribunal Federal reconheça a
inconstitucionalidade do artigo 28 da lei 11.343 de 2006, a cannabis poderá ser descriminalizada, ou
seja, o porte, o consumo e o plantio não serão mais considerados crimes.
Atualmente, a norma penal brasileira tutela a despenalização das drogas, o que
significa que o porte das substâncias não é passível de pena privativa de
liberdade, ou seja, o indivíduo que portá-las será alvo de uma pena alternativa,
como medidas socioeducativas e sanções administrativas. Contudo, há ainda um
longo caminho para que esse tema seja amplamente discutido e se torne livre de
preconceitos e estereótipos cristalizados ao longo do tempo.
Analisando
a Lei de drogas de 2006
Com a lei 11.343/06 houve a
despenalização do delito da posse de drogas e do cultivo de plantas para uso
pessoal. Entretanto, não houve a descriminalização dessas substâncias, ou seja,
elas ainda permanecem no rol dos crimes. Atualmente, o indivíduo que portar ou
plantar qualquer substância psicoativa poderá sofrer sanções alternativas, como
uma advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade
e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo, conforme os
incisos do artigo 28 da mesma lei. Esse mecanismo de despenalização acaba
ferindo os direitos fundamentais dos usuários, pois, mesmo que não puna com uma
pena privativa de liberdade, acaba atingindo o direito de privacidade, de
intimidade e de liberdade do indivíduo usufruir do próprio corpo. Sendo assim,
acaba restringindo o direito da pessoa de realizar aquilo que lhe der vontade
ou que lhe dê prazer. De acordo com o art. 5º, X da Constituição Federal de
1988, o direito à intimidade e à vida privada é inviolável, não podendo,
portanto, o governo intervir na vida personalíssima de seus cidadãos.
O Estado vem, cada vez mais, endurecendo suas
políticas, seguindo o modelo histórico estadunidense de guerra às drogas. Isso
corrobora para uma polícia militar mais violenta e atroz, que possui a quarta
maior população carcerária do mundo . Os cidadãos se encontram em uma
militarização da vida; nossa liberdade é cada vez mais cerceada por policiais
civis e militares que só aparentam nos garantir segurança. Contudo, a presença
dessas autoridades acaba provocando ainda mais mortes nos confrontos com
traficantes.
É necessário apontar que há uma certa
seletividade penal dentro dessa perspectiva. O que ocorre é que não há uma
definição clara de quem se configura como usuário de drogas e como traficante.
Desse modo, o dispositivo penal falhou em esclarecer os limites para
estabelecer quem será usuário e quem se enquadrará como traficante. De acordo
com o artigo 28, § 1º, fica sob à discricionariedade e subjetividade do juiz distinguir
essa caracterização, o que corrobora para injustiças na aplicação e execução
das penas. Desse modo, o juiz deverá analisar as circunstâncias do crime; a
natureza e quantidade da substância em questão; o local e as condições em que
ocorrerão a ação e a conduta e antecedentes do agente.
Essa diferenciação falha ainda
contribui para a perpetuação de estereótipos, já que o usuário é visto como
doente e o traficante, delinquente. Além disso, corrobora para a construção de
um maniqueísmo social dentro da política de drogas, visto que o usuário e o
traficante são considerados indivíduos “perigosos”, “criminosos” e
“vagabundos”, enquanto que as demais pessoas seriam “saudáveis” e “ordeiras”. Por
outro lado, a seletividade penal também ocorre no sentido de determinar quem
será punido, ou seja, a maioria dos presos por porte ou tráfico de drogas são
negros e pobres. Nesse sentido, essas categorias serão sempre estigmatizadas e marginalizadas
pelo meio social.
A desconstrução do modelo repressivo de política de drogas no Brasil e a
importância da atuação do STF
O
papel do STF no julgamento da descriminalização torna-se extremamente
importante para avançar e popularizar essa discussão na sociedade, que muitas
vezes é envolvida por argumentos falaciosos e superficiais. Primeiramente, as
drogas sendo proibidas não podem ser regulamentadas, trazendo riscos aos
usuários que podem vir a consumir drogas alteradas, já que estas não passam por
um controle de qualidade.
Ainda,
muitos estudos começam a apontar que, no caso da maconha, seu uso traz muitos benefícios para a medicina,
auxiliando, por exemplo, no tratamento de náuseas provocadas pela quimioterapia
do câncer; amenizando dores crônicas e ajudando no tratamento da epilepsia. No
entanto, essas pesquisas científicas são limitadas e restritas, pois devido à
criminalização da substância não é possível conhecer os seus reais poderes
medicinais. É necessário ainda que as pessoas se livrem da visão tradicional e
arcaica de que a cannabis é uma
substância mais perigosa do que o álcool e o cigarro.
Segundo uma pesquisa
realizada pela Fundação Perseu Abramo, no final de 2013, que investigou o uso
de drogas em um universo de 2.400 pessoas, concluiu que 70% dos indivíduos que
utilizaram maconha e cocaína o fizeram de modo recreativo, contra 30% das
pessoas que afirmaram desenvolver certa dependência. Contudo, comparando o uso
da cannabis com o tabaco, a pesquisa
demonstrou que 43,1% dos indivíduos que fizeram uso do tabaco apresentaram
sintomas de abstinência ao tentar parar, contra 12,7% dos que utilizaram a
maconha. Isso afasta o argumento generalista de que a cannabis é uma substância que provoca uma rápida dependência no
organismo humano.
Outro aspecto apurado
pela Fundação que é mistificado na sociedade e apoiado massivamente pelos
veículos midiáticos é a imagem de degradação pessoal e decadência que a droga
transmite aos indivíduos. Sendo assim, a imagem dos usuários de drogas é vista
como um reflexo de uma destruição interna da pessoa, como algo totalmente
maléfico e errado. Vale ressaltar que um número maior de pessoas acredita que a
maconha confere mais perigo do que o tabaco e o álcool, comprovando a
desinformação gerada pela mídia à população.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal
Federal como um Tribunal Constitucional tem o dever de proteger o indivíduo,
tutelando todos os seus direitos individuais e fundamentais para garantir a liberdade,
a privacidade, a vontade e o direito de cada um dispor livremente de seu corpo.
O uso de psicoativos, como a maconha, não atinge o bem jurídico alheio e é
protegido pelo dispositivo pautado pelo artigo 21 do Código Civil de 2002: “A vida privada da
pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará
as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta
norma”. Assim, é imprescindível que o
Supremo atue de forma segura e precisa para julgar uma das pautas mais delicadas
e polêmicas do cenário político-econômico atual que envolve interesses
capitalistas, bancadas religiosas e discursos médico-sanitários.
Propostas de políticas públicas
Se
o STF votar pela descriminalização das drogas será necessário que o governo
articule políticas que regulem e controlem o uso, porte e plantio dessas
substâncias. Esse processo deve ser lento e gradual, de modo que a sociedade
possa se adaptar a esse novo rol de substâncias e para que políticos e autoridades,
contrárias a etapas mais radicais como a legalização, não criem barreiras
impeditivas.
Um
modelo inovador que pode servir de inspiração para o Brasil é o do Uruguai que
oficializou a produção e o consumo da maconha para uso recreativo. O cultivo
caseiro limita-se a 6 pés de maconha por pessoa registrada e o coletivo, em
clubes canábicos, a 99 pés, tendo no máximo 45 sócios maiores de idade. Com
essa política, o Uruguai está conseguindo formar um mercado da maconha que impulsiona
a geração de empregos e o recolhimento de impostos, podendo controlar e
acompanhar o consumo dessa substância. O estado do Colorado, por exemplo, que
legalizou a cannabis arrecadou tantos
impostos que atualmente discute a possibilidade de repasse à população.
O Brasil deve olhar para
essas políticas como um espelho que, se bem articulado, pode melhorar e ajudar
a reformar o modelo punitivo e cruel do nosso direito penal. É necessário
refletir e frear nossa visão arcaica e ultrapassada de que a violência e
repressão se configuram como um mal necessário para a redução do consumo das
drogas. Na prática, o efeito é reverso e só traz malefícios aos usuários, tanto
recreativos como dependentes. Nossos governantes precisam formular políticas de
redução de danos para esses usuários, no intuito de protegê-los e resguardar
seu direito de consumir essas substâncias.
Para
isso, o Ministério da Saúde poderia fazer uma grande campanha de prevenção e
controle do consumo dessas substâncias, como forma de alertar à população seus
benefícios e malefícios. Além disso, poderiam ser construídos dentro das UPA’s espaços
especializados ao atendimento de pessoas dependentes, como ainda poderia ser
criada uma rede de hospitais públicos já existentes que fossem responsáveis por
atender casos emergenciais, servindo como uma clínica de contenção da
dependência.
Com a descriminalização do consumo, porte e cultivo das drogas, a máquina lucrativa do tráfico, que envolve muitas milícias e políticos corruptos sofreria um duro golpe, passando o governo a arrecadar boa parte do lucro com a produção e distribuição dessas substâncias. É preciso olhar além e problematizar essa questão polêmica, que deve ser despida de estereótipos e preconceitos por toda a sociedade. As drogas não são um problema. A sua criminalização, sim.